Li este poema num livro da Margaret Atwood, não descansei enquanto não o traduzi, foi a maneira mais simples de me tentar ver livre da bofetada que ficou colada na cara
I
Somos duros um com o outro
e chamamos-lhe honestidade
escolhendo as nossas verdades dentadas
com cuidado e apontando-as através
da mesa neutra
As coisas que dizemos são
verdadeiras: é o nosso alvo
retorcido, são as nossas escolhas
que as tornam criminosas.
II
Claro as tuas mentiras
são mais divertidas:
porque as fazes novas de cada vez
As tuas verdades, dolorosas e chatas
repetem-se continuamente
se calhar porque és dono
de tão poucas
III
Uma verdade deveria existir
não deveria ser usada
assim. Se eu te amo
é isso um facto ou uma arma?
O corpo mente
ao mover-se assim, são estes
toques, cabelos, o mármore
macio e húmido que a minha língua percorre
mentiras que me estás a dizer?
O teu corpo não é uma palavra,
nem mente
nem fala a verdade
Apenas
está aqui ou não está.
Margaret Atwood
A noite sustém-se
sem respirar, tal como um esforço.
Mais devagar, sem brisa
benevolente que num instante aviva
o duvidoso cansaço, precipita
a solução do sono.
De umas luzes iguais
vela alta parede de janelas.
Carne sozinha insone, corpos
como a mão decepada jazem,
debruçam-se, buscam o amor do ar
- e a brasa que esgotam ilumina
olhos onde não dorme
a ansiedade, a infinita esperança com que aflige
a noite, quando volta
Jaime Gil de Biedma
Bom Carnaval
Uma espécie de vazio
A imagem estendia-se
com surpreendente realidade
Pensei: é a montanha
que nunca tinha visto
Como nessa manhã
em que o seu perfil me surpreendeu
a sua imanência
Agora não me importa
porque me esvaziei
Não obstante sinto a falta
a intensidade dos meus pertences
Sinto um vazio
uma espécie de vazio
mesmo na luz
iridiscência
- malvas laranjas -
da inapreensível realidade
Yolanda Pantin
Ser soñadora en su camisa azul
que ama la tierra extraña
o atreverme como la náufraga
que vuelve al mar
porque nadie se alegra
de su salvación.
Alejandra Pizarnik
lebre completamente deliciada com o diário da Frida Kahlo
É mais fácil de longe imaginar
o que seria ter-te aqui presente
do que seria ter-te e não saber
com que forma do corpo receber-te.
Talvez um amplo véu oriental
ou o brilho mental de uma armadura
me deixassem arder sem ser molesta
no lume horizontal de uma figura.
Se te vejo, já está o meu desejo,
enquanto estavas longe, satisfeito;
no teu olhar encontro tudo quanto
à altura de amor é mais perfeito.
E no entanto, perto, fico incerta
se não é melhor bem o que imagino.
António Franco Alexandre