faz hoje oito dias passei a tarde no quarto
arrumando sentimentos (telefonemas
demorados caixotes de canto cheiíssimos)
o que trouxe a chave de casa as portas
do primeiro beijo. no outono caem as
folhas da estante e os livros ficam nus
solto uma fotografia entre o armário e
a parede investindo na surpresa de te
encontrar por acaso na próxima arrumação
do quarto. traço círculos a vermelho
no calendário de parede (sem pressa
de consultar os riscos dentro da mão)
os gatos sempre se deitam sobre o papel
mais necessário
João Luís Barreto Guimarães
Inútil dizer-te
da cidade
que vou perdendo.
Cada uma destas pedras
me diz
da distância entre nós dois.
Permaneço
(todo silêncio
e portas).
Muito nítida,
a nostalgia fere
à transparência de um arbusto.
eduardo pitta
traduçao caseira da lebreOlha, uma borboleta. Pediste um desejo?
Não se pedem desejos a borboletas.
Claro que pedem. Pediste um?
Sim.
Não conta.Louise Gluck
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta.
Herberto Helder
sabemos criar o sossego
espesso, perante o qual
até o tempo pensa que os
peixes nadam devagar
valter hugo mãe
Um fama anda numa floresta e, embora não necessite de lenha olha com cobiça as arvores. Estas têm um medo terrível porque conhecem os costumes dos famas e temem o pior. O fama, ao ver um eucalipto muito lindo, dá um grito de alegria e dança trégua e dança catalã à volta do perturbado eucalipto, dizendo:- Folhas anti-sépticas, Inverno com saúde, grande higiene. Saca do machado e fere o eucalipto no estômago, sem pena nenhuma. O eucalipto chora, ferido de morte, e as outras árvores ouvem-no dizer entre suspiros:- Pensar que este cretino não tinha mais que ir comprar umas pastilhas Valda.
Júlio Cortázar
mais uma traduçao caseira da lebre (sim, sim ando em tons de tango)
De interpretação do tango
O tango é uma tábua para os náufragos e um abismo para as mulheres.
Tocam-se outras músicas para que se fechem as feridas, mas os tango toca e canta para que se abram, para que continuem abertas para recorda-las, para meter o dedo nelas e abri-las na diagonal
O tango acredita no motivo que invoca, chora a dor e depois vêm uns passitos burlões, um contrapasso grotesco, um jogo na dor, um fazer chacota cantarolada com o seu próprio sentimentalismo.
Tem sons a carteiras vazia, a carteira da não fortuna, do fracasso económico, de tudo o que não puderam reunir. Soa então a pobreza em plena juventude.
O tango é o resmungo de Buenos Aires e dos seus desterrados, a sua tribulação musical, o seu estertor sentimental, o seu tremor neurótico, o seu ronco sensual, o seu arco-íris privativo.
Ramón Gómez de la Serna