Wednesday, September 7, 2005

faz hoje oito dias passei a tarde no quarto
arrumando sentimentos (telefonemas
demorados caixotes de canto cheiíssimos)

o que trouxe a chave de casa as portas
do primeiro beijo. no outono caem as
folhas da estante e os livros ficam nus

solto uma fotografia entre o armário e
a parede investindo na surpresa de te
encontrar por acaso na próxima arrumação
do quarto. traço círculos a vermelho

no calendário de parede (sem pressa
de consultar os riscos dentro da mão)
os gatos sempre se deitam sobre o papel
mais necessário

João Luís Barreto Guimarães



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Tuesday, September 6, 2005

Inútil dizer-te
da cidade
que vou perdendo.

Cada uma destas pedras
me diz
da distância entre nós dois.

Permaneço
(todo silêncio
e portas).

Muito nítida,
a nostalgia fere
à transparência de um arbusto.

eduardo pitta



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Monday, September 5, 2005

traduçao caseira da lebre


Olha, uma borboleta. Pediste um desejo?
Não se pedem desejos a borboletas.
Claro que pedem. Pediste um?
Sim.
Não conta.


Louise Gluck


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Saturday, September 3, 2005

Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria
.
És uma faca cravada na minha
vida secreta.

Herberto Helder


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sabemos criar o sossego
espesso, perante o qual
até o tempo pensa que os
peixes nadam devagar


valter hugo mãe



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Friday, September 2, 2005

Um fama anda numa floresta e, embora não necessite de lenha olha com cobiça as arvores. Estas têm um medo terrível porque conhecem os costumes dos famas e temem o pior. O fama, ao ver um eucalipto muito lindo, dá um grito de alegria e dança trégua e dança catalã à volta do perturbado eucalipto, dizendo:
- Folhas anti-sépticas, Inverno com saúde, grande higiene.
Saca do machado e fere o eucalipto no estômago, sem pena nenhuma. O eucalipto chora, ferido de morte, e as outras árvores ouvem-no dizer entre suspiros:
- Pensar que este cretino não tinha mais que ir comprar umas pastilhas Valda.


Júlio Cortázar



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Thursday, September 1, 2005

mais uma traduçao caseira da lebre (sim, sim ando em tons de tango)


De interpretação do tango

O tango é uma tábua para os náufragos e um abismo para as mulheres.

Tocam-se outras músicas para que se fechem as feridas, mas os tango toca e canta para que se abram, para que continuem abertas para recorda-las, para meter o dedo nelas e abri-las na diagonal

O tango acredita no motivo que invoca, chora a dor e depois vêm uns passitos burlões, um contrapasso grotesco, um jogo na dor, um fazer chacota cantarolada com o seu próprio sentimentalismo.

Tem sons a carteiras vazia, a carteira da não fortuna, do fracasso económico, de tudo o que não puderam reunir. Soa então a pobreza em plena juventude.

O tango é o resmungo de Buenos Aires e dos seus desterrados, a sua tribulação musical, o seu estertor sentimental, o seu tremor neurótico, o seu ronco sensual, o seu arco-íris privativo.

Ramón Gómez de la Serna



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