BOM ANO
Friday, December 29, 2006
Thursday, December 28, 2006
Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças açoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.
A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu
Estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo, que não voltes.
Maria do Rosário Pedreira
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças açoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.
A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu
Estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo, que não voltes.
Maria do Rosário Pedreira
Wednesday, December 27, 2006
A verdade é que também as urtigas
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
tão daninho como a luz de um semáforo
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador,
as botas do alpinista, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo,
mas eu sou da cidade até à raiz do terror.
Não consigo viver sem o saco de areia
onde exercito o excessivo golpe da exasperação.
Sem esse esbracejar a minha seiva coagula,
torna-se pastosa, sonolenta, felizita
como um rio de meandros preguiçosos,
lamacentos, imprestáveis - de que me serve
fingir o sossego a que não chego, brincar
às Arcádias em que não acredito?
Está decidido, prefiro sofrer.
Amanhã de manhã regresso ao abismo.
José Miguel Silva
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
tão daninho como a luz de um semáforo
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador,
as botas do alpinista, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo,
mas eu sou da cidade até à raiz do terror.
Não consigo viver sem o saco de areia
onde exercito o excessivo golpe da exasperação.
Sem esse esbracejar a minha seiva coagula,
torna-se pastosa, sonolenta, felizita
como um rio de meandros preguiçosos,
lamacentos, imprestáveis - de que me serve
fingir o sossego a que não chego, brincar
às Arcádias em que não acredito?
Está decidido, prefiro sofrer.
Amanhã de manhã regresso ao abismo.
José Miguel Silva
Friday, December 22, 2006
Thursday, December 21, 2006
Quero te dar um vestido com um desenho que ainda
não sei como será
Penso frutas, dragões, sereias
Fantasias que nem ainda sei bordar
Mas quero te dar um vestido, quem sabe de areia
Quem sabe de uma linha que não se saiba coser
Penso te dar um vestido bordado de ambos os lados
do querer
Nem te quero vestir
Nem quero que o vejas nem que o queiras talvez
quero te dar um vestido que a minha alma deseja
José Carlos Capinan
não sei como será
Penso frutas, dragões, sereias
Fantasias que nem ainda sei bordar
Mas quero te dar um vestido, quem sabe de areia
Quem sabe de uma linha que não se saiba coser
Penso te dar um vestido bordado de ambos os lados
do querer
Nem te quero vestir
Nem quero que o vejas nem que o queiras talvez
quero te dar um vestido que a minha alma deseja
José Carlos Capinan
Wednesday, December 20, 2006
Tuesday, December 19, 2006
Ainda está por decidir a caixa
onde somamos
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas
como ordenar essas linhas
(mesmo que
para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser
desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?
Há
chaves que deves fazer por
perder nas despedidas
se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um
voo mais desprevenido.
João Luís Barreto Guimarães
onde somamos
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas
como ordenar essas linhas
(mesmo que
para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser
desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?
Há
chaves que deves fazer por
perder nas despedidas
se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um
voo mais desprevenido.
João Luís Barreto Guimarães
Monday, December 18, 2006
Saturday, December 16, 2006
A estrutura da bolha de sabão, compreende? Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca.
Lygia Fagundes Telles
Lygia Fagundes Telles
Friday, December 15, 2006
Thursday, December 14, 2006
Um dia é maior do que a soma
das suas horas, às vezes comporta
todos os invernos e as estações assombradas
pelos prejuízos do prazer.
Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica?
A cidade não foi feita para as nossas pretensões,
está apenas alastrada por dentro de nós, crispação
de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.
Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite,
é a própria razão que nos ilumina os atalhos
para o esquecimento. Um ano inteiro não será suficiente
para tudo o que não nos acontece.
Rui Pires Cabral
das suas horas, às vezes comporta
todos os invernos e as estações assombradas
pelos prejuízos do prazer.
Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica?
A cidade não foi feita para as nossas pretensões,
está apenas alastrada por dentro de nós, crispação
de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.
Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite,
é a própria razão que nos ilumina os atalhos
para o esquecimento. Um ano inteiro não será suficiente
para tudo o que não nos acontece.
Rui Pires Cabral
Wednesday, December 13, 2006
esboço para um poema de amor moderno
embora o branco
seja mais bem descrito pelo cinzento
o pássaro pela pedra
girassóis
em Dezembro
os poemas de amor de Outrora
eram descrições da carne
descreviam isto e aquilo
por vezes pálpebras
e embora o vermelho
deva ser descrito
pelo cinzento o sol pela chuva
papoilas em Novembro
lábios de noite
a mais tangível
descrição do pão
é uma descrição de fome
nela está
o caroço húmido e poroso
o interior quente
girassóis à noite
os seios ventre e coxas de Cibele
os seios ventre e coxas de Cibele
Uma primaveril clara
e transparente descrição
da água
é uma descrição da sede
cinzas
deserto
isso produz uma miragem
nuvens e árvores movem-se
para dentro do espelho
privação de desejo
ausência
de carne
tudo isto é uma descrição de amor
um poema de amor moderno
Tadeusz Rózewicz
embora o branco
seja mais bem descrito pelo cinzento
o pássaro pela pedra
girassóis
em Dezembro
os poemas de amor de Outrora
eram descrições da carne
descreviam isto e aquilo
por vezes pálpebras
e embora o vermelho
deva ser descrito
pelo cinzento o sol pela chuva
papoilas em Novembro
lábios de noite
a mais tangível
descrição do pão
é uma descrição de fome
nela está
o caroço húmido e poroso
o interior quente
girassóis à noite
os seios ventre e coxas de Cibele
os seios ventre e coxas de Cibele
Uma primaveril clara
e transparente descrição
da água
é uma descrição da sede
cinzas
deserto
isso produz uma miragem
nuvens e árvores movem-se
para dentro do espelho
privação de desejo
ausência
de carne
tudo isto é uma descrição de amor
um poema de amor moderno
Tadeusz Rózewicz
Tuesday, December 12, 2006
A mulher
organiza as sombras para evitar o escuro
na pele sente o medo
é prudente na batalha com as perguntas
que pousam no dia
sorriso
quando o som do telefone invade a sombra
nenhuma palavra lhe sai da voz
deverá falar como se fossem outras coisas a
respirar em vez do grito?
à janela, o vento e o sol, limpam-lhe as vozes
sobrepostas a dizer aquilo que a voz não diz.
mas não hoje
disse que não seria capaz de mudar
perdida no quarto, pequenino, onde utiliza os hábitos
como movimentos grosseiros
nenhuma palavra ali tem asas
fica apenas o silêncio onde a mulher fecha
as persianas e depois as cortinas
sem explicar o sentido do grito.
Maria Sousa
organiza as sombras para evitar o escuro
na pele sente o medo
é prudente na batalha com as perguntas
que pousam no dia
sorriso
quando o som do telefone invade a sombra
nenhuma palavra lhe sai da voz
deverá falar como se fossem outras coisas a
respirar em vez do grito?
à janela, o vento e o sol, limpam-lhe as vozes
sobrepostas a dizer aquilo que a voz não diz.
mas não hoje
disse que não seria capaz de mudar
perdida no quarto, pequenino, onde utiliza os hábitos
como movimentos grosseiros
nenhuma palavra ali tem asas
fica apenas o silêncio onde a mulher fecha
as persianas e depois as cortinas
sem explicar o sentido do grito.
Maria Sousa
Sunday, December 10, 2006
Todo o meu ser é um cântico negro
que te levará
fazendo-te durar
ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos
neste cântico eu suspirei tu suspiraste
neste cântico
eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.
A vida é talvez
uma rua comprida pela qual uma mulher segurando
um cesto passa todos os dias.
A vida é talvez
uma corda com a qual um homem se enforca num ramo
a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.
A vida é talvez acender um cigarro
na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor
ou o olhar ausente de um homem que passa
tirando o chapéu a um outro homem que passa
com um sorriso vazio e um bom dia.
A vida é talvez esse momento fechado
quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos
e está no sentimento
que eu irei pôr na impressão da Lua
e na percepção da Noite.
Num quarto grande como a solidão
o meu coração
que é grande como o amor
olha os simples pretextos da sua felicidade
o belo murchar das flores no vaso
a jovem árvore que plantaste no teu jardim
e o canto dos canários
que cantam para o tamanho de uma janela.
Ah
este é o meu destino
este é o meu destino
o meu destino é
um céu que desaparece com a queda de uma cortina
o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis
reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia
o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias
e morrer na dor de uma voz que me diz
eu amo
as tuas mãos.
Irei plantar as minhas mãos no jardim
crescerei eu sei eu sei eu sei
e as andorinhas virão pôr ovos
no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.
Vou usar
um par de cerejas gémeas como brincos
e pôr pétalas de dália nas minhas unhas
há um beco
onde os rapazes que se apaixonaram por mim
se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado
os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras
e pensam nos sorrisos inocentes de uma rapariga
que foi levada pelo vento uma noite.
Há um beco
que o meu coração roubou
às ruas da minha infância.
A viagem de uma forma na linha do tempo
fecundando a linha do tempo com a forma
uma forma consciente de uma imagem
a regressar de uma carícia num espelho.
E é desta maneira
que alguém morre
e alguém segue vivendo.
Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato
que se esvazia num lago.
Eu conheço uma pequena e triste fada
que vive num oceano
e toca a flauta mágica do seu coração
suave, suavemente
pequena e triste fada
que morre com um beijo todas as noites
e com um beijo renasce a cada amanhecer.
Forough Farrokhzad
que te levará
fazendo-te durar
ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos
neste cântico eu suspirei tu suspiraste
neste cântico
eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.
A vida é talvez
uma rua comprida pela qual uma mulher segurando
um cesto passa todos os dias.
A vida é talvez
uma corda com a qual um homem se enforca num ramo
a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.
A vida é talvez acender um cigarro
na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor
ou o olhar ausente de um homem que passa
tirando o chapéu a um outro homem que passa
com um sorriso vazio e um bom dia.
A vida é talvez esse momento fechado
quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos
e está no sentimento
que eu irei pôr na impressão da Lua
e na percepção da Noite.
Num quarto grande como a solidão
o meu coração
que é grande como o amor
olha os simples pretextos da sua felicidade
o belo murchar das flores no vaso
a jovem árvore que plantaste no teu jardim
e o canto dos canários
que cantam para o tamanho de uma janela.
Ah
este é o meu destino
este é o meu destino
o meu destino é
um céu que desaparece com a queda de uma cortina
o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis
reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia
o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias
e morrer na dor de uma voz que me diz
eu amo
as tuas mãos.
Irei plantar as minhas mãos no jardim
crescerei eu sei eu sei eu sei
e as andorinhas virão pôr ovos
no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.
Vou usar
um par de cerejas gémeas como brincos
e pôr pétalas de dália nas minhas unhas
há um beco
onde os rapazes que se apaixonaram por mim
se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado
os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras
e pensam nos sorrisos inocentes de uma rapariga
que foi levada pelo vento uma noite.
Há um beco
que o meu coração roubou
às ruas da minha infância.
A viagem de uma forma na linha do tempo
fecundando a linha do tempo com a forma
uma forma consciente de uma imagem
a regressar de uma carícia num espelho.
E é desta maneira
que alguém morre
e alguém segue vivendo.
Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato
que se esvazia num lago.
Eu conheço uma pequena e triste fada
que vive num oceano
e toca a flauta mágica do seu coração
suave, suavemente
pequena e triste fada
que morre com um beijo todas as noites
e com um beijo renasce a cada amanhecer.
Forough Farrokhzad
Saturday, December 9, 2006
Thursday, December 7, 2006
Agora estamos num lugar escuro
insuspeitos de amor
ou generosidade.
Outrora transbordámos de palavras
hoje amamos a dor.
Coração repleto
jamais reconhece a abundância.
O espelho doméstico ensaia
o côncavo sorriso
crua necessidade
de um tempo de pausa
em que me revejo
e ausento.
Mas haverá beleza na imobilidade?
Ana Marques Gastão
insuspeitos de amor
ou generosidade.
Outrora transbordámos de palavras
hoje amamos a dor.
Coração repleto
jamais reconhece a abundância.
O espelho doméstico ensaia
o côncavo sorriso
crua necessidade
de um tempo de pausa
em que me revejo
e ausento.
Mas haverá beleza na imobilidade?
Ana Marques Gastão
Wednesday, December 6, 2006
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».
Carlos de Oliveira
Carlos de Oliveira
Tuesday, December 5, 2006
Aos poucos um corpo, como diz o outro,
vai ficando sozinho, bate com as portas,
recua e recua. Quando dá por isso,
já não sabe dançar, conta as estações
pela volta do correio. Assim se começa
a olhar para trás, por cima do ombro,
pegando nas coisas pelo lado mais fraco.
Pagamos o preço de querer dissecar,
fibra por fibra, em prol da ciência,
o músculo baixo, descoordenado,
a que chamamos ai coração ai.
José Miguel Silva
vai ficando sozinho, bate com as portas,
recua e recua. Quando dá por isso,
já não sabe dançar, conta as estações
pela volta do correio. Assim se começa
a olhar para trás, por cima do ombro,
pegando nas coisas pelo lado mais fraco.
Pagamos o preço de querer dissecar,
fibra por fibra, em prol da ciência,
o músculo baixo, descoordenado,
a que chamamos ai coração ai.
José Miguel Silva
Monday, December 4, 2006
no interior do dia
com uma vontade de mexer os dedos
criar paisagens com as mesmas palavras
em pequenos pedaços pelas mãos acima
remendar a pele com frases em sequências de fuga
ontem e hoje são definições imóveis
num Inverno sem folhas
prendem a luz quando
ainda falta uma hora para o fim da tarde
Maria Sousa
com uma vontade de mexer os dedos
criar paisagens com as mesmas palavras
em pequenos pedaços pelas mãos acima
remendar a pele com frases em sequências de fuga
ontem e hoje são definições imóveis
num Inverno sem folhas
prendem a luz quando
ainda falta uma hora para o fim da tarde
Maria Sousa
Sunday, December 3, 2006
Não éramos todos mais felizes se vendesse eu partes do meu corpo dentro do livro? Em vezes do livro que tem por baixo o meu corpo? Ou melhor: se eu vendesse o meu corpo para ser comprado, metido na prateleira, e fazendo como os outros livros fizesse, para o fim da história, alguma coisa de verdadeiramente legível.
Pedro Sena-Lino
Pedro Sena-Lino
Saturday, December 2, 2006
Thursday, November 30, 2006
Wednesday, November 29, 2006
Tuesday, November 28, 2006
mais uma tradução caseira da lebre
Fazer um homem (II)
Método de massapão
Qualquer receita de biscoitos serve, mas acrescentem gengibre extra, se quiserem resultados mais animados; e as nossas leitoras que escolheram este método geralmente querem! Passas fazem bons olhos e umbigos, mas podem usar aquelas drageias pequeninas prateadas desde que tenham cuidado para não partir os dentes com elas.
Quando tirarem o vosso homem do forno podem ter problemas em segura-lo, os homens feitos desta maneira são capazes de se fazer à estrada, com motas ou sem elas, a roubar lojas de conveniência, a tatuarem-se, e ao pé-coxinho cantarem “Run! Run! As fast as you can! You can't catch me, I'm the gingerbread man! ” Atar um cordel à perna antes de ir ao forno pode ajudar, mas, enfim – na nossa experiência, não por muito tempo.Há uma coisa boa a ser dita sobre este método: estes gajos são deliciosos, suficientemente bons para comer.
Margaret Atwood
Fazer um homem (II)
Método de massapão
Qualquer receita de biscoitos serve, mas acrescentem gengibre extra, se quiserem resultados mais animados; e as nossas leitoras que escolheram este método geralmente querem! Passas fazem bons olhos e umbigos, mas podem usar aquelas drageias pequeninas prateadas desde que tenham cuidado para não partir os dentes com elas.
Quando tirarem o vosso homem do forno podem ter problemas em segura-lo, os homens feitos desta maneira são capazes de se fazer à estrada, com motas ou sem elas, a roubar lojas de conveniência, a tatuarem-se, e ao pé-coxinho cantarem “Run! Run! As fast as you can! You can't catch me, I'm the gingerbread man! ” Atar um cordel à perna antes de ir ao forno pode ajudar, mas, enfim – na nossa experiência, não por muito tempo.Há uma coisa boa a ser dita sobre este método: estes gajos são deliciosos, suficientemente bons para comer.
Margaret Atwood
Monday, November 27, 2006
Sunday, November 26, 2006
todos por um
A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza
Santos
Mártires
e Heróis
Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a ponto de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum
Mário Cesariny
entre nós e as palavras o nosso dever de falar
A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza
Santos
Mártires
e Heróis
Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a ponto de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum
Mário Cesariny
entre nós e as palavras o nosso dever de falar
Thursday, November 23, 2006
esperei-te. deixei que se ocupassem os dedos
de pequenas coisas que não te soubessem
durante um minuto inteiro fingi o olhar
distraindo-se do tempo que não te trouxe.
(...)
Pedro
sim, sim assaltei-lhe o blog!!! (A girl's got to do what a girl's got to do)
de pequenas coisas que não te soubessem
durante um minuto inteiro fingi o olhar
distraindo-se do tempo que não te trouxe.
(...)
Pedro
sim, sim assaltei-lhe o blog!!! (A girl's got to do what a girl's got to do)
Wednesday, November 22, 2006
tradução caseira da lebre
Mais nenhuma foto
Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes. Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico. Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas. Eu sofro da minha própria multiplicidade. Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco. Isso teria permitido uma ideia firme. Isto é ela. Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais.
Margaret Atwood
Mais nenhuma foto
Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes. Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico. Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas. Eu sofro da minha própria multiplicidade. Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco. Isso teria permitido uma ideia firme. Isto é ela. Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais.
Margaret Atwood
Tuesday, November 21, 2006
gala royal, green smith, red delicious, golden, reineta, pink lady, starking, tantas maçãs diferentes e os dias todos iguais, nunca uma promoção, na compra de uma semana completa ganhe 20% de dia, ou compre dois dias felizes e leve três, nunca um brinde para clientes habituais, três horas com o formato de primavera, ou um expositor com dias defeituosos em saldo, uns minutos desperdiçados ou umas horas adormecidas, descontos, dias mais baratos, se os dias não possuíssem a monótona qualidade de serem todos iguais podiam vender-se na secção dos hortícolas, dias alegres, melancólicos, terríveis, correntes, calmos, murchos, dias 100% biológicos, embalados ou avulso, tantas maçãs diferentes e os dias todos iguais.
Dulce Maria Cardoso
Dulce Maria Cardoso
Monday, November 20, 2006
mais uma vez desce as escadas
para falar de ausências
tem medo e em dias curtos decide
envelhecer no interior da casa
ao sono conhece-o como fuga ao silêncio
um dia escreveu (era domingo) sobre os vestígios
da respiração nos pequenos nadas
anos depois refugia-se no outono como
quem vê a vida toda nas folhas
Maria Sousa
para falar de ausências
tem medo e em dias curtos decide
envelhecer no interior da casa
ao sono conhece-o como fuga ao silêncio
um dia escreveu (era domingo) sobre os vestígios
da respiração nos pequenos nadas
anos depois refugia-se no outono como
quem vê a vida toda nas folhas
Maria Sousa
Sunday, November 19, 2006
Não digas que eu não estava à janela,
que não foi para ti o que não viste.
Há tanta coisa que não sabes, não digas.
Um dia ver-me-ás à janela de ontem
com a roupa que hei-de vestir amanhã.
Até lá pensa que me sonhaste. Nem eu mesma sei
o que fiz nesse dia. Mas a janela guarda os meus dedos
como tu me guardas. O tempo é uma invenção recente.
Era uma vez essa mulher que viste. Retira o vidro,
a moldura, e não te esqueças de abrir o horizonte.
Rosa Alice Branco
que não foi para ti o que não viste.
Há tanta coisa que não sabes, não digas.
Um dia ver-me-ás à janela de ontem
com a roupa que hei-de vestir amanhã.
Até lá pensa que me sonhaste. Nem eu mesma sei
o que fiz nesse dia. Mas a janela guarda os meus dedos
como tu me guardas. O tempo é uma invenção recente.
Era uma vez essa mulher que viste. Retira o vidro,
a moldura, e não te esqueças de abrir o horizonte.
Rosa Alice Branco
Friday, November 17, 2006
Thursday, November 16, 2006
Sejamos sinceros: nunca vos passou pela cabeça quererem ver-se viver. Esperam viver para vocês, e fazem bem, sem pensarem naquilo que, entretanto, possam ser para os outros; não porque a opinião alheia não vos interesse para nada, porque vos interessa e muito; mas porque vivem na ilusão tranquila de que os outros, de fora, devem ter de vocês a imagem que vocês têm de vocês próprios.
E se depois alguém vos faz notar que o vosso nariz descai um nadinha para a direita... não?, que ontem disseram uma mentira... nem assim?
Luigi Pirandello
E se depois alguém vos faz notar que o vosso nariz descai um nadinha para a direita... não?, que ontem disseram uma mentira... nem assim?
Luigi Pirandello
Wednesday, November 15, 2006
Tuesday, November 14, 2006
O meu corpo nu está aqui
e não noutro lugar.
Passa e verás o que está
sob o esmalte dos dentes.
Passa e verás.
A minha cara não é a minha cara.
A pequenina menina sem nome
a boneca com lágrima.
Por favor por favor por favor
Leva-me a casa.
Por favor por favor
brinca comigo.
A autómata protege-me
Com o seu corpo de miúda bonita de goma homologada.
Tão doce, tão doce a perfeito
no seu ventre vazio soa o mar.
As pessoas adoram isso.
Adoram a concha sob a qual o caranguejo ermitão sobrevive.
As pessoas preferem as conchas, levam-nas para casa
encostam-nas ao ouvido
escutam-nas.
Miriam Reyes
e não noutro lugar.
Passa e verás o que está
sob o esmalte dos dentes.
Passa e verás.
A minha cara não é a minha cara.
A pequenina menina sem nome
a boneca com lágrima.
Por favor por favor por favor
Leva-me a casa.
Por favor por favor
brinca comigo.
A autómata protege-me
Com o seu corpo de miúda bonita de goma homologada.
Tão doce, tão doce a perfeito
no seu ventre vazio soa o mar.
As pessoas adoram isso.
Adoram a concha sob a qual o caranguejo ermitão sobrevive.
As pessoas preferem as conchas, levam-nas para casa
encostam-nas ao ouvido
escutam-nas.
Miriam Reyes
Monday, November 13, 2006
Sunday, November 12, 2006
A vida responsável
Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
Em não dizer inconveniências,
Esmerar-me na prosa de umas folhas
E estou-me nas tintas para elas,
Retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
Responder ao correio, estender roupa,
Declarar rendimentos, ler uns livros,
Fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
De ter o tempo todo que quisesse
Para fazer só coisas esquisitas,
Coisas desnecessárias, prescindíveis
E, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.
Amalia Bautista
Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
Em não dizer inconveniências,
Esmerar-me na prosa de umas folhas
E estou-me nas tintas para elas,
Retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
Responder ao correio, estender roupa,
Declarar rendimentos, ler uns livros,
Fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
De ter o tempo todo que quisesse
Para fazer só coisas esquisitas,
Coisas desnecessárias, prescindíveis
E, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.
Amalia Bautista
Saturday, November 11, 2006
Friday, November 10, 2006
Sugestão da lebre para bem celebrar o São Martinho
Aproveitando os saborosos calores do Verão de S. Martinho, a Da Mariquinhas – Bar /Livraria de Poesia – convida VEXA para a apresentação pública do seu espaço e respectivos atributos barístico-literários, este Sábado, dia 11, das 16h em diante.
Entre castanhas e água-pé, ilustres amigos e artistas convidados prometem animar a festa com improvisações musicais e récitas várias para adultos e crianças.
O estabelecimento, único no seu segmento, ao mesmo tempo muito moderno e muito intigo, fica no Largo de Santo Antoninho, no prazenteiro bairro da Bica, em Lisboa.
Aberta de Quarta a Domingo, entre o meio-dia e a meia-noite (quem diz meia-noite, diz duas da manhã, assim a conversa esteja boa), esta nova casa Da Mariquinhas tem paredes amarelas e uma colecção incompleta de retratos de tipos excepcionais, cíclicos de cinema, uma selecção musical que não envergonha ninguém e muita da melhor poesia publicada em todo o mundo.
Mais garantimos o televisionamento dos grandes derbies futebolísticos e seu indispensável tremoço, memoráveis tostas, sopas, compotas e álcoois fortes. Ocasionalmente, na esplanada sob as árvores, ouvem-se gaivotas, modas sertanejas e polémicas avinagradas.
Aproveitando os saborosos calores do Verão de S. Martinho, a Da Mariquinhas – Bar /Livraria de Poesia – convida VEXA para a apresentação pública do seu espaço e respectivos atributos barístico-literários, este Sábado, dia 11, das 16h em diante.
Entre castanhas e água-pé, ilustres amigos e artistas convidados prometem animar a festa com improvisações musicais e récitas várias para adultos e crianças.
O estabelecimento, único no seu segmento, ao mesmo tempo muito moderno e muito intigo, fica no Largo de Santo Antoninho, no prazenteiro bairro da Bica, em Lisboa.
Aberta de Quarta a Domingo, entre o meio-dia e a meia-noite (quem diz meia-noite, diz duas da manhã, assim a conversa esteja boa), esta nova casa Da Mariquinhas tem paredes amarelas e uma colecção incompleta de retratos de tipos excepcionais, cíclicos de cinema, uma selecção musical que não envergonha ninguém e muita da melhor poesia publicada em todo o mundo.
Mais garantimos o televisionamento dos grandes derbies futebolísticos e seu indispensável tremoço, memoráveis tostas, sopas, compotas e álcoois fortes. Ocasionalmente, na esplanada sob as árvores, ouvem-se gaivotas, modas sertanejas e polémicas avinagradas.
Thursday, November 9, 2006
tradução caseira da lebre
Que disseram eles na primeira vez que estiveram sozinhos na mesma divisão? Que disse ele quando ela tirou o véu e ele pode ver que ela não era uma voz mas um corpo e por isso finito? Que disse ela quando ela descobriu que tinha deixado um quarto trancado por outro? Falaram de amor, naturalmente, mas isso não os manteve ocupados para sempre.
Margaret Atwood
Que disseram eles na primeira vez que estiveram sozinhos na mesma divisão? Que disse ele quando ela tirou o véu e ele pode ver que ela não era uma voz mas um corpo e por isso finito? Que disse ela quando ela descobriu que tinha deixado um quarto trancado por outro? Falaram de amor, naturalmente, mas isso não os manteve ocupados para sempre.
Margaret Atwood
Wednesday, November 8, 2006
Tuesday, November 7, 2006
Interrompemos a programação habitual para compromissos culturais
"aguasfurtadas" "nº10
a programação segue dentro de umas horas
"aguasfurtadas" "nº10
a programação segue dentro de umas horas
Monday, November 6, 2006
Não moro
Não moro não quero mudar nunca.
Habito nos campos casas da casa
pluma de todos os úteros.
Mordo à chuva a casca dos animais
e já não sei se existo por baixo da pele
se por baixo da penugem das aves que passam.
Rocha por onde roçam anfíbios
eu sou todos os anfíbios
o dia em que nasce
em nenhuma cama.
catarina nunes de almeida
Não moro não quero mudar nunca.
Habito nos campos casas da casa
pluma de todos os úteros.
Mordo à chuva a casca dos animais
e já não sei se existo por baixo da pele
se por baixo da penugem das aves que passam.
Rocha por onde roçam anfíbios
eu sou todos os anfíbios
o dia em que nasce
em nenhuma cama.
catarina nunes de almeida
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