BONHANHO
Saturday, December 29, 2007
Thursday, December 27, 2007
Wednesday, December 26, 2007
Tuesday, December 25, 2007
Cair de gotas
Não sei, olha, terrível como chove. Chove que se farta, densa e tristemente, gotas enormes e duras contra a varanda, que fazem “plaf” e se esborracham como bofetadas uma após outra que chatice. Aparece agora uma gotinha no alto da janela, periclitante contra o céu que a destrói em mil brilhos apagados, cresce e oscila, parece que cai mas não cai, não há meio de cair. Agarra-se com unhas e dentes, não quer cair, e a barriga vai-a aumentando, é agora uma gota que incha majestosa e de repente “zup” ela aí vem, “plaf”, desfeita, nada, uma viscosidade no cimento.
Mas há as que se atiram e suicidam imediatamente, aparecem na goteira e daí se mandam, creio ver a vibração do salto, as pernitas que se soltam e o grito que as embriaga nesse nada de cair e aniquilar-se. Tristes, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus
Julio Cortázar
Não sei, olha, terrível como chove. Chove que se farta, densa e tristemente, gotas enormes e duras contra a varanda, que fazem “plaf” e se esborracham como bofetadas uma após outra que chatice. Aparece agora uma gotinha no alto da janela, periclitante contra o céu que a destrói em mil brilhos apagados, cresce e oscila, parece que cai mas não cai, não há meio de cair. Agarra-se com unhas e dentes, não quer cair, e a barriga vai-a aumentando, é agora uma gota que incha majestosa e de repente “zup” ela aí vem, “plaf”, desfeita, nada, uma viscosidade no cimento.
Mas há as que se atiram e suicidam imediatamente, aparecem na goteira e daí se mandam, creio ver a vibração do salto, as pernitas que se soltam e o grito que as embriaga nesse nada de cair e aniquilar-se. Tristes, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus
Julio Cortázar
Thursday, December 20, 2007
Wednesday, December 19, 2007
Tuesday, December 18, 2007
Monday, December 17, 2007
É mais que certo: não sinto a tua falta.
Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis,
a reler as cinco cartas que me foste endereçando
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas
que deixaste no quintal. Sempre só e sem
carpir o meu estado (porque não me fazes falta),
pus o disco da Chavela que me deste no Natal
e comecei a preparar o teu prato preferido.
Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso
abri uma garrafa de maduro e não me custa
confessar-te que não sinto a tua falta.
Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar
dois convites pra sair (aleguei androfobia)
e estou neste momento a recortar a tua imagem
(não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois,
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
a inábil idiota que deixou que tu te fosses.
José Miguel Silva
Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis,
a reler as cinco cartas que me foste endereçando
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas
que deixaste no quintal. Sempre só e sem
carpir o meu estado (porque não me fazes falta),
pus o disco da Chavela que me deste no Natal
e comecei a preparar o teu prato preferido.
Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso
abri uma garrafa de maduro e não me custa
confessar-te que não sinto a tua falta.
Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar
dois convites pra sair (aleguei androfobia)
e estou neste momento a recortar a tua imagem
(não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois,
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
a inábil idiota que deixou que tu te fosses.
José Miguel Silva
Saturday, December 15, 2007
Friday, December 14, 2007
Thursday, December 13, 2007
Wednesday, December 12, 2007
Reflexões:
1.ª- para os outros eu não era aquele que, para mim, tinha até então julgado ser;
2.ª- não podia ver-me viver;
3.ª- não podendo ver-me viver, permanecia estranho a mim mesmo, ou seja, alguém que os outros podiam ver e conhecer, cada qual à sua maneira, e eu não;
4.ª- era impossível colocar-me diante desse estranho para o ver e conhecer, eu podia ver-me, mas não vê-lo;
5.ª- para mim o meu corpo, se o observava de fora, era como uma aparição, uma coisa que não sabia que vivia e ficava ali, à espera que alguém pegasse nela;
6.ª- tal como eu pegava no meu corpo para ser, por vezes, como me queria e me sentia, também qualquer um podia pegar nele para lhe dar uma realidade à sua maneira;
7.ª- finalmente, aquele corpo, por si mesmo, era de tal forma nada e de tal forma ninguém que um fio de ar podia, hoje, fazê-lo espirrar, amanhã, levá-lo consigo.
Luigi Pirandello
1.ª- para os outros eu não era aquele que, para mim, tinha até então julgado ser;
2.ª- não podia ver-me viver;
3.ª- não podendo ver-me viver, permanecia estranho a mim mesmo, ou seja, alguém que os outros podiam ver e conhecer, cada qual à sua maneira, e eu não;
4.ª- era impossível colocar-me diante desse estranho para o ver e conhecer, eu podia ver-me, mas não vê-lo;
5.ª- para mim o meu corpo, se o observava de fora, era como uma aparição, uma coisa que não sabia que vivia e ficava ali, à espera que alguém pegasse nela;
6.ª- tal como eu pegava no meu corpo para ser, por vezes, como me queria e me sentia, também qualquer um podia pegar nele para lhe dar uma realidade à sua maneira;
7.ª- finalmente, aquele corpo, por si mesmo, era de tal forma nada e de tal forma ninguém que um fio de ar podia, hoje, fazê-lo espirrar, amanhã, levá-lo consigo.
Luigi Pirandello
Tuesday, December 11, 2007
Monday, December 10, 2007
Mapa de Anatomia: O Olho
O olho é uma espécie de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globo brilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas,
naufrágios e peixes de ouro.
Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são inventadas.
O olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no olho, lágrimas.
Cecília Meireles
O olho é uma espécie de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globo brilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas,
naufrágios e peixes de ouro.
Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são inventadas.
O olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no olho, lágrimas.
Cecília Meireles
Friday, December 7, 2007
Thursday, December 6, 2007
Wednesday, December 5, 2007
Minto-me. Sou um rasgo de impudor.
Represa vazia, muita água. Está
a começar a esquecer-me, diz-me
que o esqueça, que
esqueça todo o dia, o longo dia,
por isso penso: esquece.
Lenço rasgado, uma algibeira, uma gare
de comboios vários em que
alguém chora. Ainda bem
que não sou eu a que amontoa
gotículas de constituição salina na cara.
Eu esqueço.
Concha García
Represa vazia, muita água. Está
a começar a esquecer-me, diz-me
que o esqueça, que
esqueça todo o dia, o longo dia,
por isso penso: esquece.
Lenço rasgado, uma algibeira, uma gare
de comboios vários em que
alguém chora. Ainda bem
que não sou eu a que amontoa
gotículas de constituição salina na cara.
Eu esqueço.
Concha García
Tuesday, December 4, 2007
Estou a ver a casa e estou a ver-me nela:
confusamente embora as portas ao fechar-se
fazem cair-me as pálpebras, suas noites de Inverno
são só meus pés frios, é carne desta carne
ou eu sou pedra dela e ela é como casca
diminuta em meu bolso e eu como uma caixa
já vazia de chá em seu ventre de barco.
Mas é a minha casa, ou a casa que eu tive,
Onde escolher maças para adoçar-me a boca
E andar pelos armários com a boneca partida
Até ao armário partido com portas catedrais
Que guardavam o estrume para outras sementeiras.
María Victoria Atencia
confusamente embora as portas ao fechar-se
fazem cair-me as pálpebras, suas noites de Inverno
são só meus pés frios, é carne desta carne
ou eu sou pedra dela e ela é como casca
diminuta em meu bolso e eu como uma caixa
já vazia de chá em seu ventre de barco.
Mas é a minha casa, ou a casa que eu tive,
Onde escolher maças para adoçar-me a boca
E andar pelos armários com a boneca partida
Até ao armário partido com portas catedrais
Que guardavam o estrume para outras sementeiras.
María Victoria Atencia
Monday, December 3, 2007
antónio aqui tens os meus cinco filmes
The Pillow Book
If...
The Night Of The Iguana
In the Mood for Love & 2046
Touch of Evil
mas não me posso esquecer nem do
Eternal Sunshine Of The Spotless Mind
nem do Dolls
e muito menos do Velvet Goldmine
e depois de ter escolhido os meus filmes, passo a batata quente à marta e ao nuno, ao senhor do 15den, à jone e à ana c
The Pillow Book
If...
The Night Of The Iguana
In the Mood for Love & 2046
Touch of Evil
mas não me posso esquecer nem do
Eternal Sunshine Of The Spotless Mind
nem do Dolls
e muito menos do Velvet Goldmine
e depois de ter escolhido os meus filmes, passo a batata quente à marta e ao nuno, ao senhor do 15den, à jone e à ana c
Wednesday, November 28, 2007
Monday, November 26, 2007
Sunday, November 25, 2007
Thursday, November 22, 2007
Wednesday, November 21, 2007
Tuesday, November 20, 2007
Monday, November 19, 2007
Friday, November 16, 2007
Thursday, November 15, 2007
Ela gostava de tudo aquilo: da mesa da cozinha, dos pequenos bancos de madeira, das árvores que conseguia ver da janela, de uma certa pureza do ar que a obrigava a renunciar aos prazeres de adulto: aquele tempo tinha uma marca infantil. Crescera naquela casa.Mas agora acabou: estava já crescida. Como uma investigação que termina, ela sentia que chegara ao fim. Já não cresço, murmura.Não havia necessidade de não ser sincera: estava sozinha, podia dizer a verdade.
Gonçalo M. Tavares
Gonçalo M. Tavares
Wednesday, November 14, 2007
Monday, November 12, 2007
À infância só se chega partindo de muito longe. A infância é aí, onde partes, não onde chegas. Olha para trás. Que vês? Nada. A memória é a única coisa que verdadeiramente te pertence, mas lembras-te de um estranho. Como poderias, há muitos anos, saber que eras apenas a lembrança de um estranho:
tu?
Lembras-te do carrinho de pau? Lembras-te do poço? O que havia debaixo da cama? O que estava escondido atrás dos cortinados?
Palavras é tudo o que tens. O carrinho de pau: palavras. O cão: palavras. O medo: palavras. Alguma vez tiveste outra coisa?
Manuel António Pina
tu?
Lembras-te do carrinho de pau? Lembras-te do poço? O que havia debaixo da cama? O que estava escondido atrás dos cortinados?
Palavras é tudo o que tens. O carrinho de pau: palavras. O cão: palavras. O medo: palavras. Alguma vez tiveste outra coisa?
Manuel António Pina
Friday, November 9, 2007
Thursday, November 8, 2007
depois de te dizer que a melancolia já não se usa
fumo um cigarro e invento um abandono
foram várias as vezes que escolhi a tua presença
para que o que escrevo tivesse corpo
(escrevo) gestos num livro de quedas
por entre a paisagem doméstica
cheia de vazios regresso ao sono
onde deixei os pássaros
Maria Sousa
fumo um cigarro e invento um abandono
foram várias as vezes que escolhi a tua presença
para que o que escrevo tivesse corpo
(escrevo) gestos num livro de quedas
por entre a paisagem doméstica
cheia de vazios regresso ao sono
onde deixei os pássaros
Maria Sousa
Wednesday, November 7, 2007
Gostava de estar sempre ao pé de ti
mas nunca estou mais perto do que quero
do que longe de ti quando a ti te desejo.
De dia embrulho-te num vestido escuro
para olhos estranhos me verem.
Quero ser sombra se tu estiveres ausente
tal como tu és sombra ao pé de mim.
desde que te amo estou só completamente.
Ulla Hahn
mas nunca estou mais perto do que quero
do que longe de ti quando a ti te desejo.
De dia embrulho-te num vestido escuro
para olhos estranhos me verem.
Quero ser sombra se tu estiveres ausente
tal como tu és sombra ao pé de mim.
desde que te amo estou só completamente.
Ulla Hahn
Tuesday, November 6, 2007
no princípio era
não dormia sem o escuro absoluto,
doíam-lhe os olhos de ter visto cidades,
de ter esquecido gente, do frio
do vidro nas palavras. Demorava tanto
a entender o mundo que agora não dormia
de muita luz que as coisas tinham
antes sequer de serem suas. Trabalhava-se tanto
nesse lugar onde vivia com outros como ela
que às vezes pensava: tão estranho nascer
(quer dizer, nascer mesmo, estar aqui)
para o dia passado com estranhos.
E por isso, no princípio, não dormia
sem procurar o amor, sem beijar na testa
a noite que acabava serena e exausta como a noite.
No princípio era.
Depois esvaziou-se com cuidado.
Filipa Leal
não dormia sem o escuro absoluto,
doíam-lhe os olhos de ter visto cidades,
de ter esquecido gente, do frio
do vidro nas palavras. Demorava tanto
a entender o mundo que agora não dormia
de muita luz que as coisas tinham
antes sequer de serem suas. Trabalhava-se tanto
nesse lugar onde vivia com outros como ela
que às vezes pensava: tão estranho nascer
(quer dizer, nascer mesmo, estar aqui)
para o dia passado com estranhos.
E por isso, no princípio, não dormia
sem procurar o amor, sem beijar na testa
a noite que acabava serena e exausta como a noite.
No princípio era.
Depois esvaziou-se com cuidado.
Filipa Leal
Monday, November 5, 2007
Sunday, November 4, 2007
Thursday, November 1, 2007
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.
Luís Miguel Nava
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.
Luís Miguel Nava
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