Monday, December 20, 2004

O clima natalício instala-se a pouco e pouco, a lebre delicia-se a ler



A CHRISTMAS CAROL



I



Era uma vez, em noite escura e fria,

uma muito morena toutinegra

(que assim adjectivada mais daria

com essa noite densa, escura e fria).

Era esta noite dia vinte e quatro

de um Dezembro de vento como açoite

geladíssimo, uivante, em fios de prata,

mil novecentos e noventa e oito,

e eram agora quase onze da noite,

e o frio arremetia-se de frente.



Ora a nossa morena toutinegra

que lá por ser morena não deixava

de ter cara tristonha, um pouco eslava,

tinha um sonho importante de sonhar.

Esse sonho era ser ave diferente:

em vez de toutinegra, cotovia,

ou quase via verde, ou toutirosa,

ou coisa mais gostosa de viver.

Estava-se nessa noite na floresta,

e a toutinegra, pela vez terceira,



evocou em voz alta o nome desse

que, quando mal piava e era trigueira,

a mãe lhe repetira devagar.

"Pai Natal", "Pai Natal", dizia ela,

"Concede-me o desejo de mudar

de toutinegra em quase cotovia,

ou toutirosa em brilhos de luar."

Isto dizia ela, não esquecendo

o poder da palavra, ao evocar,

poder que mais no momento em questão



(ou seja, vinte e quatro de Dezembro

de um milénio em processo de findar)

se arrepiava de um grande silêncio,

não dando sequer tema de conversa.

Mas não deixemos que isto se intrometa

dentre esta história comovente e bela

daquela toutinegra em desespero

por pedir já pela terceira vez

(e a sua curta vida eram três anos)

sempre naquele dia e à mesma hora



para deixar de ser o que era agora.

Pela terceira vez então pediu,

as asas agarradas como prece,

ao ramo mais baixinho do pinheiro.

"Pai Natal, Pai Natal, se estás aí,

embrulhando presentes coloridos,

ajaezando as renas e os compridos

fios que ligam trenó e lhe dão rumo,

recorda-te do meu pedido insane

que repito há três anos, sem parar.



Fui toutinegra boa, cumpridora,

comi sempre as minhocas que a mamã

me mandava comer. E nunca, nunca

depenei o malvado do pardal

que se mete comigo por maldade

- e vontade, querido Pai Natal,

vontade não faltou... Mas resisti.

E na escola do mocho decorei

muita matéria chata e repetida.

Mas fiz sempre os deveres, fui boa amiga.



Que mais posso fazer, se tu não ouves?"

Isto dizia a pobre, a tiritar,

não tanto pelo frio, mas pelos nervos

da espera de três anos a esperar,

sempre no mesmo sítio, à mesma hora,

todos os anos repetindo. Ora,

por essa altura estava o Pai Natal

ocupado a tratar de outros assuntos:

escrever a conferência do congresso

de Pais Natais que estava já tão perto,



esfregar as pobres costas com unguento

que o da Finlândia lhe tinha mandado,

e também conferir listas de preços

cada vez mais difíceis de gerir.

Ele era Continente, ele era Jumbo,

ele era Carrefour e mercearia,

a ver se por acaso não daria

para comprar o urso mais barato.

Que o orçamento cada vez mais curto

e um Pai Natal também não é de chumbo.



Entre tanto afazer, tanto exercício

mental, emocional, entre outros mais,

como podia o pobre Pai Natal

ligar a essas preces tão banais

como as que a toutinegra repetia?

Como podia ele? Não podia!



II



Mas ah, eis que do outro pólo outro,

ou seja, pólo sul, surge figura

estranha, diferente do que é tão costume.

vestida em tule azul em vez de feltro

vermelho; e gola em renda em vez de arminho;

e em vez do gorro de pompom macio,

um extremamente chique chapelinho.



Esta figura dirigiu-se leve,

muito elegante por entre a alvura

para, em lugar de renas, carro branco

de motor especial, movido a neve,

muito ecológico e despoluente

(que para ela era ponto assente



não abusar da mão de obra animal).

Oh, quem seria esta figura estranha

que faz o narrador omnipresente

ficar arrepiado de contar?

E como é que a morena toutinegra

conseguiu ser ouvida em pólo sul?



E como conseguiu o seu pedido

ser mais ouvido aí que em pólo norte?

São estas questões-chave nesta história

que já quase a três quartos do final.

A resposta à primeira: A Mãe Natal!

Quem mais podia ser essa figura?



Quanto às perguntas que a seguir são postas,

todas têm que ver com a primeira.

Ou seja: a Mãe Natal não tinha aquela

ansiedade de ser a mais cimeira

(além disso, os Congressos eram chatos,

e as compras, uma coisa de prazer).



Finalmente, acrescente-se que a acústica

funcionava melhor no pólo sul,

E que a otite de que o Pai Natal

padecia, este ano: bem pior

E assim na noite de desse vinte e quatro,

mil novecentos e noventa e oito,



tudo se conjugava em perfeição

para que uma morena toutinegra

perdida no negrume da floresta,

agarrada a raminho de pinheiro,

pudesse ser ouvida em seriedade

pudesse finalmente ter palavra.



Desceu a Mãe Natal, de chapelinho

disposto um pouco à banda pelo vento.

E mal chegada ao alto do pinheiro

onde a nossa avezinha, em desespero,

roía unhas, asas, engolia

comprimidos de nervos e azia,



logo fez jus à sua, ainda jovem,

mas cada vez melhor, reputação.

E com três piparotes da varinha

(que ela tinha varinha, como as fadas)

transformou a morena toutinegra

em coisa tão diferente e invulgar



que até o mocho, meio adormecido,

piou alto, exclamando: "Ó tu tão rara,

ó tu tão renascida como a fénix,

tu já não nos pertences, não és nossa,

tu és agora de paragens outras,

destinada a desígnios tão diversos!"



A toutinegra soltou rouco pio,

e, num delíquio mais próprio de trópicos,

chamou a Mãe Natal, que concluiu

o que fizera à sua criação,

notando consternada que, na pressa,

se esquecera dos pós macrobióticos,



necessários ao êxito total

de uma lisa e feliz transformação.

"Ó Mãe Natal", gemia a toutinegra,

o meu pedido era ser toutirosa,

que é coisa mais gostosa de se ver.

Mas eu não queria ter estas escamas



nem estas guelras assim penduradas

uma de cada lado. E o meu rabinho,

que era tão elegante e descuidado,

agora bifurcou-se...?! Ó Mãe Natal,

Queria ser cor de rosa e não dourada!

Ó Mãe Natal, o que é que eu vou fazer?"



A Mãe Natal pensou, mas não demais,

que lhe serviu súbita inspiração.

E logo ali imaginou paisagem

onde viver dourada fosse bom,

onde pernas ou asas: coisas poucas

e usar escafandro fosse de bom tom.



III



E é por isso que hoje, onde era antes

uma floresta densa, escura e fria,

há um lago de carpas e de trutas,

onde vive um ser estranho e infeliz:

uma dourada de escamas brilhantes

que pia como ave, sem o ser,

que canta, mas tem guelras cor de fogo

e minúsculas sardas no nariz.



Passou-se isto no tempo de uma vez,

mil novecentos e noventa e oito,

e esta história já quase a terminar.

Mas que é do Pai Natal? Que aconteceu?

Vive ainda nervoso ou já morreu?

E a Mãe Natal conseguiu regressar?



Do Pai Natal não houve mais memória,

consta que foi viver para um convento

em sítio onde qualquer ente se perde.

E a Mãe Natal tornou-se mais amena,

passou a apreciar carne de rena;

e dourinegras; e a via verde.





Ana Luísa Amaral





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